Cícera Guajajara navega no Rio Caru, no meio de uma mata fechada que toca a água verde. Cada movimento e som é um alerta. Ela está em uma expedição em busca de ‘caraiu’, o homem branco, dito na língua Guajajara. Cícera é uma das coordenadoras das Guerreiras da Floresta, grupo de mulheres da Aldeia Maçaranduba, Terra Indígena Caru, situada no estado do Maranhão.
Elas trabalham ao lado dos Guardiões da Floresta, homens que também protegem a mata. Juntos, eles realizam rondas nos limites da aldeia e identificam invasões de madeireiros, caçadores, plantadores e pescadores. “Para nós, a mata é sagrada, ela é a nossa mãe. Nós dependemos da floresta para sobreviver”, explica. A Guerreira de 40 anos é mãe de seis filhos e avó de cinco netos. “A gente protege o nosso território para o futuro da aldeia, da nossa família”, pontua com uma voz firme e decidida.
O protagonismo das mulheres Guajajaras, da Aldeia Maçaranduba começou em 2014 quando confrontaram os parentes, índios da mesma etnia, que vendiam madeiras e arrendavam pastos para os não-indígenas. A iniciativa partiu do Cacique Antônio Guajajara, mas foram elas, as mulheres, que se posicionaram contra o esquema ilegal e convenceram os índios a protegerem o próprio território.
No mesmo ano, o grupo criou as Guerreiras da Floresta, com o intuito de complementar o trabalho dos Guardiões. Enquanto os homens fazem parte das terras Caru, Awá Guajá e Alto Turiaçu, que ficam próximas uma à outra, somente as mulheres da Aldeia Maçaranduba é que realizam as rondas.
“Há muito tempo, as mulheres não participavam de reuniões e não tinham voz. Quando a gente criou o grupo, começou a ser ouvida. Hoje a nossa opinião é muito respeitada na comunidade”, revela Cícera. O projeto começou tímido, com apenas oito Guerreiras da Floresta.
Atualmente 32 mulheres realizam expedições de 15 e 20 dias. Elas também organizam palestras sobre preservação da natureza, nas escolas municipais e estaduais da região, se embrenham nas matas e nos rios, conversam com quem invade o território indígena e exigem que os invasores saiam do território. Optam, sempre, pelo diálogo. Mas já realizaram ações pontuais ao lado de outros Guajajara, como bloquear rodovias em defesa da floresta.
As Guerreiras da Floresta sabem como é importante preservar o seu território, uma área de quase 173 mil hectares, um pouco maior que a cidade de São Paulo. E que desde 1982 é oficialmente reconhecida como Terra Indígena Caru. Elas vivem em um ponto verde encravado em meio a áreas de pastos e plantações.
Cerca de 75% da cobertura florestal do estado do Maranhão foi desmatada para fornecer espaço para a agricultura e pecuária, aponta o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, INPE. Aproximadamente 70% da floresta nativa que restou encontra-se nas 16 terras indígenas e nas unidades de conservação do Maranhão. O que torna as áreas atrativas para o extrativismo.
Entre 2001 e 2017, quase 4% da floresta nativa foi desmatada. O avanço dos tratores é mais rápido do que as mudas plantadas. Para 10 hectares destruídos, apenas um é recuperado, apontam dados da Global Forest Watch. Mesmo com a luta desigual, as Guerreiras não recuam. Elas somam forças com os homens e também ocupam cargos que tradicionalmente eram deles. “É uma conquista que as mulheres estejam nestes espaços”, comemora Marcilene Liana Guajajara, uma das fundadoras do grupo.
Pouco tempo para cuidar da filha
Enquanto a sua filha de um ano dorme enrolada em um pano de tecido nos seus ombros, ela conta como a sua vida é muito diferente das mulheres na aldeia que vieram antes dela. “Eu tenho pouco tempo para cuidar da minha família. Fico mais tempo em outros municípios do que em casa”, explica.
Isso porque Marcilene é uma líder da aldeia Maçaranduba. Participa de inúmeras reuniões e desenvolve políticas públicas que beneficiam os índios do Maranhão. A Guajajara de 35 anos, e mãe de cinco filhos, é coordenadora das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão e representante na Comissão Estadual de Políticas Públicas para os Povos Indígenas. “Somos Guerreiras da Floresta, mas nos envolvemos em outras atividades além da proteção do território. A nossa vida não é sossegada. São muitas competências”, conta orgulhosa. As mulheres da aldeia também participam de grupos como o de fortalecimento da cultura, educação e saúde.
Uma guerreira grávida
Paula Guajajara, 24 anos, faz parte da equipe da saúde. É membro do conselho local e distrital indígena. Acompanha e monitora a entrada de medicamentos na aldeia, dessa forma realiza a ponte entre os Guajajara e a Secretaria Especial de Saúde Indígena. Ela também é uma Guerreira da Floresta.
E, no momento, navega no Rio Caru ao lado de outras quatro mulheres da aldeia. Mesmo grávida do segundo filho, no quarto mês de gestação, Paula decidiu viajar em uma ronda de 15 dias. A indígena é que cuida do registro do grupo. Munida com uma câmera fotográfica e drone, documenta o trajeto dos 38 homens e das cinco mulheres.
Os equipamentos foram comprados pelas Guerreiras. O grupo arrecadou fundos e hoje possui drone, radioamador, câmera fotográfica e aparelhos de GPS. “As fotos e vídeos na mata são muito importantes para denunciar as invasões que ocorrem no território”, explica.
A rotina nas rondas
Elas têm uma responsabilidade com a Aldeia Maçaranduba e os seus parentes Guajajara, mas também com os vizinhos, Awás-Guajás. O povo caçador e coletor é um dos últimos grupos nômades do Brasil. Uma parte da população vive isolada na reserva maranhense — e as Guerreiras da Floresta cuidam para que permaneça assim. Enquanto realizam as rondas, as indígenas cavam poços para tomar água e se banhar, e coletam frutas como bacaba, bacuri e pequi. Pescam os peixes e caçam os animais.
Elas dormem nas casas de Guajajaras que vivem na beira do rio. Quando a expedição é no meio do mato, constroem barracas com lonas e se acomodam em meio às árvores até o sol nascer. A jornada é difícil, principalmente pelo perigo que enfrentam quando encontram um não-indígena.
Crianças entre as vítimas
Mesmo sem nunca presenciar algum conflito que resultou em morte, as Guerreiras contam que os confrontos violentos com madeireiros, caçadores e agricultores são recorrentes na região amazônica. Entre 2003 e 2017, ao menos 1.119 indígenas foram assassinados, de acordo com o relatório da ONG Conselho Indigenista Missionário (CIMI). O documento aponta que, no ano de 2017, dentre as vítimas havia um bebê de colo e duas crianças de 4 e 10 anos.
Na região do Maranhão, os homicídios ocorrem por conta da disputa por terra e da defesa dos direitos indígenas. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam que o Maranhão é o segundo estado do Brasil com mais assassinatos no campo. Entre 1985 e 2017, 157 pessoas foram mortas. Em agosto do ano passado, o cacique da Terra Araribóia foi encontrado morto perto de um rio.
Lideranças acreditam em homicídio. Em 2017, um indígena da etnia Krikati foi morto a pauladas enquanto dormia na rede da sua casa. A principal hipótese da polícia é que o crime foi motivado por questões fundiárias. E não são só os homicídios que preocupam a população indígena.
O fogo que se alastra na região também é uma ameaça para a floresta. Em 2017, o Maranhão apresentou a maior incidência de queimadas dos últimos cinco anos. Foram aproximadamente 439 mil focos no estado, aponta o INPE. Animais morreram, rios e riachos secaram e as terras indígenas foram atingidas. Relatório do Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográficos revela que a maior parte das queimadas é proposital. Quem trabalha com cultivo e pastagem ateia fogo no mato para a abertura de novas áreas para plantio. Em muitos casos as chamas se espalham descontroladamente.
Arrisca a vida pelo povo
Cícera conhece os riscos que as Guerreiras da Floresta enfrentam. Mas explica que arrisca a própria vida pelo seu povo. Muitas vezes, as indígenas levam os filhos nas expedições. Dessa vez, as crianças ficaram na aldeia. É que o grupo está em uma área de recorrente conflito, próximo ao município São João do Caru, situado na outra margem do rio.
“Nós levamos os filhos em locais tranquilos, assim a gente demonstra para os não-indígenas que a gente não quer briga”, explica. A sua caçula, Cláudia, reconhece o esforço e se inspira na mãe. “Quando eu crescer eu vou lutar pela floresta e pela nossa aldeia. Quero ser como ela, assim, maravilhosa”, resume.
A jovem Guajajara de 13 anos tem uma paixão: o futebol. Ela joga todos os dias com as amigas da aldeia. É uma das zagueiras do time. Marca os atacantes e defende o gol. A defesa, tão importante no esporte, também acontece na Terra Indígena Caru. Cláudia participa do grupo de jovens da comunidade, que conta com 52 integrantes. O objetivo, claro, é defender a natureza e perpetuar as tradições dos povos indígenas.
“Muitas vezes nós [indígenas] somos criticados e julgados. Mas eu sei que temos direitos. Eu e as minhas amigas lutamos pelo que é nosso.” Se depender das mulheres da Aldeia Maçaranduba, o território indígena estará protegido. Ainda bem.
Reportagem de Aline Takashima
Colaboração para Universa
Publicada originalmente pelo Universa UOL em 12 de março de 2019